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22 junho 2009

Capas negras de... liberdade.

«Capas académicas caídas sobre os ombros, emblemas traçados com adesivo e um jogo que "serviu para levar a crise para fora de Coimbra".
Num dia normal, os jogadores da Académica entrariam em campo numa correria desenfreada. No dia 22 de Junho de 1969 encararam o Estádio Nacional numa marcha lenta, com as capas caídas sobre os ombros em sinal de luto e com o emblema da academia traçado por um adesivo. Essa final da Taça de Portugal com o Benfica aconteceu há 40 anos. "O futebol deu voz a uma revolta que a ditadura se empenhava em esconder. Mudou um pouco a história de Portugal e mexeu com o país", sustenta ao PÚBLICO Mário Campos, ala direito da equipa e um dos protagonistas do momento que muitos consideram como tendo sido o maior comício de sempre contra o marcelismo.Foi um jogo de futebol, mas foi também um dos últimos capítulos da revolta estudantil de 69 - o prenúncio do fim do regime. "Foi uma caminhada de dois meses e o banquete foi a final." Nas palavras de Mário Campos os dois temas fundem-se. No Estádio Nacional também.Os estudantes queriam liberdade de associação, representação nos órgãos da universidade e democratização do ensino. Tinham decretado luto académico, tinham participado na mais concorrida assembleia de que há memória na universidade e recusavam-se fazer a Queima das Fitas. A Académica queria a Taça. Juntou-se "o útil ao agradável", assinala Ricardo Antunes Martins, realizador do documentário Futebol de Causas (pela Zed Filmes). "Coimbra queria mostrar ao país as suas reivindicações e nada melhor do que essa final", explica o realizador, que teve acesso a um resumo de 60 minutos de imagens de arquivo da RTP. "Num ambiente onde a informação circulava com dificuldade, o jogo permitiu dar a conhecer a luta de Coimbra, serviu para levar a crise para fora de Coimbra, um objectivo estratégico da contestação", acrescenta o historiador Miguel Cardina.

À volta dos transístores

Nas meias-finais (frente ao Sporting), em Lisboa, a Académica equipara de branco com uma braçadeira preta (consta que por culpa do calor). "Mas o preto da braçadeira no branco dos equipamentos levantou suspeitas", conta Mário Campos. A Capital escreveu em título "A Académica de branco em Lisboa" e o Governo tomou medidas, precavendo-se para a final - chegou a pensar-se substituir na final a Académica pelo Sporting, mas alguém terá lembrado que essa "habilidade" também atrairia as atenções. O despacho proibia equipamentos brancos, bem como o uso de qualquer tipo de braçadeiras. A RTP não transmitiu o jogo e pela primeira vez o presidente Américo Tomás não esteve presente para entregar a Taça - nem ele nem nenhum elemento do Governo.Espartilhado pela censura, o Diário de Coimbra titulava "Uma tarde à volta dos transístores" e descrevia assim a cidade que ficara para trás: "Coimbra parecia uma cidade abandonada. Uma parte da população havia-se transferido, não com armas e bagagens, mas com toda a força do seu entusiasmo para Lisboa, onde esteve em causa o prestígio de Coimbra e da sua Academia (...) O resto da tarde passou-se à volta dos transístores, vivendo intensamente o desfecho do grande prélio, em que estavam envolvidos os estudantes desta cidade e que a população sentia de igual forma."Em Lisboa, o ambiente estava pesado. Algumas fotografias da colecção Crise Académica - Coimbra 1969, espólio da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, mostram o estádio a abarrotar, uma procissão de tarjas que circulavam como um carrossel para escapar à polícia ("Estão 36 estudantes presos", "Mais ensino, menos polícia"...) e mais de 35 mil comunicados a voar. Na sua investigação, Ricardo Antunes Martins deparou-se com o singular apoio dos adeptos do Benfica. "Na bancada ninguém encolhia as pernas, dificultando desta forma a passagem da PIDE."Pela primeira vez as equipas entraram a passo. No terreno de jogo, o diálogo entre o benfiquista António Simões e Mário Campos ajudava a perceber a barreira que existia entre Coimbra e o resto do país.- A Académica está de luto porquê?- É a academia... isso é muito complicado, mas depois explico.O árbitro já tinha apitado.Artur Jorge, que falhou o jogo porque fazia a tropa em Mafra, lembra o momento como "democrático e saudável". Do lado da Académica, um grupo politizado, com sete internacionais A e dez estudantes universitários (maioritariamente de Direito e de Medicina), marcou Manuel António. O Benfica de Otto Glória não levantou o pé, empatou e, nos descontos, Eusébio fez o golo da derrota da Académica. Um mal menor.»
Luís Octávio Costa
in "Público"

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