RSS Feed

07 novembro 2013

Mulher coragem. E um dispensável 2013

Não quero nada com a violência. Nada. Mas não posso negar: quando penso em ti, apetece-me agarrar-te pelos colarinhos e dar-te uma lição. Ou pontapear-te até que desapareças da minha vista e leves contigo as feridas que abriste e as memórias dolorosas que deixaste. Nunca é tarde para aprender mas ensinaste-me, sem aviso prévio, a mais dura das lições: que, ao contrário do que contam os livros de histórias e do que nos levam a crer os defensores do karma, as maiores injustiças podem abater-se sobre as pessoas mais justas. Atiraste-me ao chão com um golpe baixo, amarraste-me os braços para que nada pudesse fazer e puseste-me a mordaça para que nem pudesse sequer gritar bem alto a minha revolta. Mas não me quiseste de olhos vendados. Pelo contrário. Ordenaste-me: 'Abre os olhos. O mundo é isto.' E deixaste-me assistir, sem nada poder fazer, a uma monstruosidade que teima em prolongar-se. Eu, com a insistência que me conheces, não me canso de perguntar: 'Porquê a mim?' E tu teimas em responder com um silêncio sepulcral, que me deixa apenas entregue às vozes que fazem do tempo livre um autêntico tormento. Espero que compreendas, por isso, que não me inspiras boas recordações e que mais depressa te pregava um valente estalo do que gritaria o teu nome aos sete ventos.

Perguntar-me-ás: 'Não te deixo nada de bom?' E nesse caso não te posso mentir. 'Deixas.' Vales pelos que, num gesto de desespero, procuraram repor a justiça. Vales pelo carinho dos que nunca me permitiram tombar. Vales pela presença de quem me mimou e amou perante a intempérie.

Mas vales acima de tudo por Ela. A que eu conheci como menina e vi fazer-se uma mulher prodigiosa. A que eu comecei a chamar amiga quando todos os problemas se resumiam aos trabalhos da faculdade e que, no último ano e meio, vi vestir a pele de guerreira perante as maiores agruras da vida. A que começou o ano cambaleante de dor e perda e não teve sequer tempo de respirar antes de ser aturdida por novo soco no estômago. A que respondeu sempre com o mais incrível dos sorrisos e que transformou, com uma classe e serenidade inigualáveis, uma palavra-medo em palavra-coragem. A que, ainda não tinha vivido um quarto de século, e já nos tinha dado a todos a maior das lições de vida - a de que não há batalha tão dura que não possamos vencer. Ela foi o melhor de ti e hei-de sempre guardá-la como tal, no melhor lado da memória e do coração. Envolta num orgulho que não tem fim

(Mas 2013, faz-me um favor. Põe-te a andar depressinha e, se não for pedir muito, manda outro que seja bem melhor. Agradecida.)

25 abril 2012

Do amor.

Digeriu a pergunta com o sorriso terno de quem a esperava há uma eternidade. Reconheceu, nos grandes olhos verdes da neta, o mesmo medo que tanto a tinha assombrado, há mais de 50 anos. Endireitou os óculos, afastou-lhe os caracóis teimosos e pediu-lhe que se sentasse para escutar, à medida que ela própria procurava acomodar-se na cadeira que a viu fazer-se uma mulher como há poucas.

- Vais sentir-te plenamente preenchida e vais acreditar, com todas as tuas forças, que ele te vai fazer feliz para sempre. Vais pensar nele mal acordas e antes de te deitares e perguntar-te se com ele acontece o mesmo. Vais querer passar cada segundo do teu tempo livre com ele e sentir um vazio de cada vez que tiveres que o deixar. Vais sentir-te a pessoa mais protegida do mundo de cada vez que ele te abraça e a mais vulnerável de cada vez que, por qualquer razão, sentires que ele não está a ser tão carinhoso e doce como sempre foi. E vais perguntar-te se se passa alguma coisa, mesmo que ele te garanta que não. Vais ter medo e sentir-te insegura, não porque não confies, mas porque a vida se encarregou de pôr na tua vida algo tão valioso que o vais querer preservar com todas as tuas forças. E os teus olhos vão-se encher de lágrimas de cada vez que deres por ti a imaginar-te sem o sorriso e o carinho dele.

Vais cobrar aquilo que sabes que não deves, não porque queiras exigir demasiado dele, mas porque a vida te parece tão melhor quando estão juntos. Vais dizer coisas de que te vais arrepender no segundo seguinte e vais-te culpar de cada vez que tiveres consciência que foste injusta e que ele faz tudo por ti. Vais-te perguntar se estás a ser boa o suficiente e vais sentir um conforto imenso de cada vez que o olhares nos olhos e perceberes que, além de namorado, ele também é o teu melhor amigo. Vais-te orgulhar daquilo que construíram e vais dar por ti a pensar no quanto gostarias que ele pudesse vir a ser o pai dos teus filhos.

Vais rir à gargalhada das coisas parvas que ele diz e faz e acreditar que a vossa cumplicidade é caso raro. Vais ficar triste de cada vez que ele te magoar porque, mesmo que sem intenção, ele vai fazê-lo. E vais sentir-te a mulher mais feliz do mundo quando fizerem as pazes. Vais ter dias em que a vontade de o esmagares nos teus braços não te vai largar. Vais perguntar-te mil vezes se estão a caminhar na direcção certa e se estás a agir da melhor forma. E vais ter medo que, com o avançar do tempo, o encanto se perca e as coisas mudem.

Vai haver dias em que ele te vai irritar até mais não e outros em que, se pudesses, lhe oferecias o Mundo. Vais-te sentir invadida por uma amálgama de sentimentos de toda a espécie e vais achar que, às vezes, o amor é tanto que não te cabe no peito e que a falta que ele te faz quando estás longe é insuportável. E vai haver vezes em que vais pensar que preferias nunca te ter apegado assim, porque, quando se gosta tanto, o medo de que as coisas possam correr mal é avassalador e imaginares-te a esquecê-lo e a recomeçar tudo de novo te vai parecer um pesadelo pelo qual desejas, do fundo do coração, não ter que passar.

Mas não tenhas medo, princesa. No fundo, hás-de saber sempre que valeu a pena. Que gostar assim é um dom e que, ainda que tudo acabe, aprender a amá-lo foi a melhor coisa que te podia ter acontecido.


16 janeiro 2012

Maria e Vicente


Os dedos frágeis e enrugados entrelaçavam-se de forma doce. Os passos, lentos e arrastados, faziam-se numa sintonia assustadoramente perfeita. No rosto, as rugas - tantas quantos os anos que haviam partilhado - não ocultavam o sorriso cúmplice. E nem os esgares de cansaço, à medida que avançavam pela calçada, conseguiam esconder a felicidade de quem (posso jurar) se amou uma vida inteira.

Cativaram-me desde o primeiro instante. O imenso frio não me impediu de os olhar, emocionada, durante todo o demorado caminho que percorreram até ao fim da rua - juntos, sempre juntos. Chamei-lhes Maria e Vicente. E de repente estava a vê-los, sessenta anos antes, a rirem à gargalhada, profundamente apaixonados. Ou com as lágrimas nos olhos, invadidos pelo medo. De se perderem. Imaginei o carinho e a paciência de que precisaram para ficarem juntos, nos piores momentos. Perguntei-me quantas vezes terão provado que o amor não sucumbe à primeira adversidade. Imaginei as vezes em que, sem querer, se magoaram um ao outro. E souberam perdoar. Perguntei-me se alguma vez terão deixado de acreditar.

Nisto, estavam já muito perto de dobrar a esquina. No último instante, já com as lágrimas a quererem escapar, quis desesperadamente correr para eles e perguntar-lhes qual era o segredo.
A vergonha impediu-me. Então virei costas, respirei fundo e prossegui o meu caminho. Não sem antes fechar os olhos e pedir um desejo. Com muita força.


19 agosto 2011

Cedofeita (a minha)

A calçada irregular serve de cenário ao vaivém constante. As paredes desgastadas e (tantas) vandalizadas contam, a quem a queira ouvir, a história de uma Cedofeita que se perdeu no tempo e, ainda assim, soube sobreviver. Muitos - quase todos - passam perfeitamente indiferentes. Eu não. A minha Cedofeita guarda histórias de vida e é grandiosa em memórias. Esconde os ecos dos desabafos e das gargalhadas e consegue, como nenhuma outra, transportar-me para um caleidoscópio de imagens que me aquecem o coração. Subitamente, quase posso jurar que ainda nos vejo numa correria desenfreada pela noite cerrada, com medo mas perdidas de riso, a sermos donas do mundo. Ou a nós. Os dois. Encasacados e a bater o dente. Inebriados num momento que nos escapou por entre os dedos. Ou a ti, a mostrares-me que não há noite tão longa que não veja o Sol nascer. E, no fundo da rua, a multidão embriagada. De alegria e bom viver.

O burburinho de quem passa desperta-me do meu transe. É uma da tarde. Não há correrias desenfreadas, noite cerrada, pessoas encasacadas ou multidões embriagadas. Só um vaivém constante. De gente que passa, indiferente à magia de uma Cedofeita que é eterna. Eu não. A minha Cedofeita é um caleidoscópio de tudo o que nunca quero esquecer.

03 agosto 2011

"Amaranta, por outro lado, cuja dureza de coração a espantava, cuja concentrada amargura a amargava, foi revelada na última análise como a mulher mais terna que jamais existira, e compreendeu com uma magoada clarividência que as injustas torturas a que submetera Pietro Crespi não eram ditadas por uma vontade de vingança, como toda a gente pensava, nem o lento martírio com que frustrou a vida do coronel Gerineldo Márquez tinha sido determinado pela bílis da sua amargura, como toda a gente pensava, mas sim que ambas as atitudes foram uma luta de morte entre um amor desmesurado e uma cobardia invencível, triunfando finalmente o medo irracional que Amarante sempre teve do seu próprio e atormentado coração."


Gabriel García Márquez
Cem anos de solidão

Absolutamente notável.

23 junho 2011



“A pensar nunca resolvo o assunto. Não é a pensar que uma pessoa consegue sair de estados de alma difíceis. Nesse caso outra coisa tem de acontecer. Então, deve-se ser passivo e escutar. Estabelecer outra vez contacto com um bocadinho de eternidade.”


E continua a fazer tanto sentido.